terça-feira, 12 de janeiro de 2010

A CULTURA E O ISLAM

A CULTURA E O ISLAM (Mahmud Hassan)

Toda religião possui fortes elementos culturais que a vinculam às suas origens. Existe, em todas, um caráter universal que identifica sua mística e lhe confere uma unicidade estando em qualquer região, cultura, características políticas, sociais e econômicas. Porém, existe um outro elemento que não pode ser negado, quando houver um distanciamento entre a cultura original da religião e as diferentes regiões onde ela se estabelece. Esse elemento é a necessidade de uma contextualização da universalidade religiosa aos paradigmas determinados pelas diversas culturas por onde essa religião se espalha.
É óbvio que a cultura, no seu entendimento antropológico, sendo observada como o conjunto de comportamentos resultantes de uma grande diversidade de interações da sociedade, coloca-se como um elemento social forte, e que confere identidade aos grupos humanos, como a língua, hábitos alimentares, vestimentas, interação com o meio ambiente, etc. Ao perceber a importância das culturas diversas espalhadas pela África e Américas é que os europeus conseguiram fincar-se como colonos ao criar um corte cultural nessas regiões ocupadas por seus impérios.
Quero dizer, também, que através do fortalecimento dessa cultura é possível afirmar uma nação que defende seus direitos e comporta-se de forma exemplar quanto aos seus deveres. O verdadeiro conceito de cidadania. A globalização, mundialização ou internacionalismo, como queiram chamar o que temos vivido nas últimas décadas, através do fortalecimento de blocos regionais e um mercado único, tem enfraquecido esse importante valor para que nações mais pobres não se submetam ao grande poder e imposições do capital de nações mais poderosas. O Brasil, cooptado por essa corrente internacional tem exibido valores estatísticos no seu crescimento econômico que o coloca em posição de país emergente e capaz de sentar-se à mesa dos mais ricos para propor negociações. Deixou de priorizar a produção industrial para entrar no mercado financista e mascarar resultados que só os cientistas econômicos conseguem enxergar. Parou de produzir emprego nas fábricas e valorizou as instituições financeiras, e ainda retornou ao velho status de país do plantation, ou agrobusiness, investindo e incentivando grandes propriedades para a produção de grãos e gado destinados ao mercado internacional, enquanto pelo menos 100 crianças morrem todos os meses por desnutrição, e uma criança a cada bimestre fica cega por falta de vitamina A.
Que milagre é esse que os economistas fazem com os números? A resposta está na concentração de renda. Somos o país de maior concentração de renda no mundo: apenas 0,1% da população detém 42% de toda riqueza nacional. Essa é a nossa realidade decorrente da nossa cultura de “dinheiro na cueca”, e uma democracia que é a herança mais podre que a Revolução Francesa e seus ideais iluministas de liberalismo político puderam deixar para a humanidade. Um ideal que tirasse o poder das mãos dos imperadores para centralizar capital nas mãos dos burgueses.
Nessa altura devem estar perguntando: e a religião com isso? Mas eu entro com outra pergunta: e o Islam, impregnado de uma cultura de camelos e desertos que teimam em não sair da vivência religiosa dos muçulmanos fora do Oriente Médio? Sou muçulmano, vivo a universalidade da minha religião, e busco fazê-lo nas suas mais profundas raízes, com honestidade e grande estima pelos meus irmãos, mas também me pergunto: qual a conexão entre os nossos preceitos e pilares com a realidade latinoamericana, especificamente, o Brasil?
O nascimento do Islam no Oriente teve em seu principal homem, o Mensageiro de Allah (SAAS), Muhamad, a inspiração necessária para que a vivência do islamismo estivesse viceralmente vinculada às questões políticas e econômicas daquele processo histórico. Não ficou uma pergunta sem resposta, e todas essas respostas podem ser transportadas a qualquer realidade política, econômica e social respeitando às culturas e identidades de cada nação que acolhe o Islam, os exemplos do Profeta Muhamad (SAAS) e a Nobre Mensagem do Quran.
O califado como solução para a sucessão do Profeta após sua morte foi uma saída encontrada pela assembléia dos crentes, e que possui grande legitimidade. Essa escolha deu origem ao que chamamos hoje de sunitas. Porém, é inegável que essa escolha foi uma solução política, uma vez que o Califa tinha responsabilidades “materiais” (organização social, exército, designação de conselhos para as diversas tarefas de uma nação que se formou com a expansão islâmica no Oriente), mas não recebeu o legado espiritual do Islam. O Califa, uma expressão que significa “liderança”, “lugar tenente”, sempre representou, mesmo antes do Islam, uma liderança política. Abu-Bakr foi o primeiro a usar esse termo para designar a sucessão do Profeta. Depois, os que defendiam a sucessão através de uma linhagem de parentesco também usaram esse termo para nomear Ali, marido da filha do Profeta, Fátima, dando origem ao que depois seriam chamados os “adeptos de Ali” (xiitas). Não é sem razão que os xiitas desenvolveram maior vivência espiritual e sabedoria no campo filosófico do que os sunitas, que foram sempre grandes defensores da nação islâmica. Com certeza, o Islam não sobreviveria sem o caráter guerreiro dos sunitas e sua organização como grandes conquistadores.
Essa divisão trouxe grandes problemas para o Islam, quando, juntos, seriam perfeitos: a religiosidade ao espírito de organização e guerreiros. Sunitas dizem que o terceiro sucessor xiita, Hussein, o segundo neto do Profeta, filho de Ali com Fátima, foi traído pelos próprios xiitas quando foi morto. Por outro lado, a historiografia diz que o segundo sucessor, Hassan, primeiro neto do Profeta, foi morto pelo exército dos omíadas, uma etnia essencialmente sunita; os sunitas dizem que os xiitas estão em desvio por se auto-flagelarem quando recordam a data da morte do neto do Profeta, e por terem traído Hussein, que teve morte abominável numa emboscada. Essa atitude é condenada no Islam, sendo considerada grave pecado e desvio. Essa é uma das fortes razões pela qual os sunitas rejeitam a realidade muçulmana dos xiitas. Mas, a julgar por essa linha de raciocínio, não seria também aceitável a conduta dos sunitas como muçulmanos, quando os sauditas se aliam aos imperialistas americanos e ajudam a financiar milícias dentro do Islam para matarem uns aos outros, no Paquistão, no Afeganistão e, recentemente, mataram em um atentado mais de 10 xiitas, entre eles, três importantes oficiais do Exército Revolucionário. Qual a pior conduta que poria abaixo o credo islâmico? Não há resposta.
A universalidade do Islam está muito além dessas condutas que nos fazem julgadores desviados, pois essa tarefa compete apenas a Allah. Não temos o legado de Allah para julgar a vivência islâmica de nenhum irmão. Nenhum irmão que tenha prestado seu testemunho diante de outros muçulmanos e se afirma como muçulmano pode ser excluído da legião dos virtuosos servos de Allah por outro irmão. Os desígnios de Allah são insondáveis e corresponde à grave pecado tentar antecipar-se ao que só a Allah compete. Somos todos muçulmanos.
E somos muçulmanos também no Brasil, independente de nossas simpatias por lideranças religiosas, estadistas, partidos políticos, etc. Certamente, por razões culturais, teremos sempre nossas diferenças com nossos descendentes do Oriente Médio, cujos antepassados para cá imigraram, e foram acolhidos por nosso povo, assim como nós recebemos as bênçãos expressas na transmissão do Islam em sua universalidade, para vivenciarmos essa religião como brasileiros, resultado de um amálgama de três matrizes étnicas, multicultural e com problemas que fazem agonizar um povo que só conhece a política que privilegia as elites, desde a chegada dos colonizadores, até os dias de hoje. Assim foi construída a pobreza e a necessidade desse povo que tanto precisa das orações e das ações de nossos irmãos muçulmanos, no sentido de mudar o rumo daquilo que tanto sacrifica os mais humildes nesta nação. Cremos no destino, mas a nós foi dado a conhecer “os dois rumos”, a “piedade e a impiedade”, como prova também de que nossas escolhas erradas resvalam e provocam conseqüências na vida de outros, como a ganância, o amor excessivo à riqueza, virar as costas para o cego, não acolher o mendigo empoeirado e não apontar para a injustiça e denunciar o injusto.

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